O tema é polêmico entre educadores. Se de um lado há um grupo que defende mais clareza no currículo, há outros que reivindicam a autonomia dos professores.
“Não posso deixar que a definição do que é necessário para aprender seja feita pelas diferentes pessoas, nos diferentes lugares”, disse.
“Precisamos muito do professor, mas ele implementa uma decisão de Estado”, afirmou à Folha, em sua primeira entrevista após assumir a presidência do instituto, órgão do Ministério da Educação responsável pelo Enem.
Sobre o exame, ele descarta, no curto prazo, a realização de duas edições por ano, mas afirma que quer analisar o uso do computador em outras provas aplicadas pelo governo federal, o que pode facilitar a reedição de exames.
Defensor do ensino integral, ele aponta que a escola no Brasil foi “pensada para poucos” e que o atualmodelo resulta em uma “formação superficial”. Abaixo, os principais trechos da entrevista.
Folha – Quando o ministro Henrique Paim assumiu o comando do MEC, ele apontou como prioridade a formação dos professores da educação básica. Qual será sua prioridade no Inep?
Chico Soares – A nossa prioridade tem que ser dialogar [com o MEC] e implementar as prioridades do ministério.
O instituto está bem estabelecido na questão dos indicadores educacionais [como o Ideb, indicador dequalidade da educação básica]. Eles cumprem uma função muito importante, de dar subsídios para políticas públicas.
No entanto, eles têm uma riqueza que ainda não está explorada e é isso que vamos procurar fazer, dar a esses números uma vida pedagógica. O que a gente quer é organizar esse material com a lógica da instrução e dizer para o professor: está aqui algo que você pode utilizar.
De que forma isso pode ser feito?
O que a gente vai procurar fazer é explicitar de uma forma organizada, em algum tipo de portal, quais são as demandas cognitivas e pedagógicas das diferentes questões utilizadas [nas provas].
Se temos uma questão que é distinguir fato de opinião, vou dizer para o professor: seus alunos do 5º ano são capazes de distinguir fato de opinião, mas num texto muito simples. Eles não são capazes de distinguir num texto um pouco mais complexo.
O que é um texto complexo? O professor teria exemplos. Esse é o esforço que a gente vai fazer.
Na gestão do ministro Fernando Haddad, houve a promessa de mais uma edição do Enem por ano. O sr. vai tentar implementar dois exames por ano?
Não. É impossível se fazer dois “Enens” por ano com esse Enem. O crescimento [de inscritos] foi de tal ordem que a logística se impôs. A demanda é razoável, mas teremos que pensar formas alternativas que não estão colocadas no curto prazo. No curto prazo, não teremos nenhuma mudança.
E o que seriam essas formas alternativas?
Existe um uso cada vez maior do computador. Estamos querendo trazer [esse recurso] para o Inep e usá-lo em avaliações menores, com as quais a gente possa aprender as diferentes maneiras que o computador pode ser usado.
Celpe-bras [exame de proficiência em português] e Encceja [exame para certificação do ensino fundamental] seriam as primeiras [experiências]. Mas não está se pensando no curto prazo para o Enem, porque ele é muito grande.
Recentemente a organização do SAT (o “Enem” dos EUA) anunciou algumas mudanças para deixar o conteúdo da prova um pouco mais próximo do que o aluno do ensino médio está aprendendo lá. Uma mudança semelhante não deveria ser feita no Enem?
A mudança que está havendo é aproximar o exame americano da rotina das escolas, ou seja, aproximar a avaliação do currículo.
Aqui, o Enem já é o nosso currículo. Podemos discutir se esse currículo, que é o que as escolas estão ensinando e que o Enem está pedindo, é o ideal. Essa é uma discussão que ultrapassa muito o Inep.
Mas como o Enem molda o currículo, não é justamente isso que o Inep vem fazendo?
Temos uma implementação de uma base nacional comum [com a aplicação do Enem] que eventualmente as pessoas podem olhar e falar: “Olha, ela está desequilibrada, porque tem conhecimentos sendo exigidos que eventualmente não estariam ali”.
Essa é uma questão que precisa ser discutida. Somos parte do debate educacional e participantes influentes, mas isso é uma questão da sociedade. Nós podemos e vamos participar e nossa reflexão, embora influente, não é a única.
O sr. é favorável a uma discussão sobre o currículo da educação básica?
Sou favorável por uma questão de justiça escolar. Temos desigualdades educacionais muito marcantes, e uma coisa absolutamente fundamental para que todos aprendam aquilo que necessitam para a cidadania é que [o currículo] esteja bem definido.
E hoje ele está definido?
Não está. Nossas definições curriculares são muito gerais. Se não digo claramente o que espero, nunca vou conseguir [alcançar o objetivo].
Não posso deixar que a definição do que é necessário para aprender seja feita pelas diferentes pessoas nos diferentes lugares. Alguns vão tomar excelentes definições. Outros, infelizmente, vão tomar definições que vão prejudicar turmas inteiras.
Aqui a gente toca num ponto muito delicado: precisamos muito do professor, mas ele implementa uma decisão de Estado. Não posso dar a cada um a possibilidade de ser o intérprete do direito à educação. Por isso que a base nacional comum é importante.
Isso não é uma coisa que vai ser criada pela varinha mágica, mas a gente precisa fazer.
Hoje o Enem é usado para o acesso ao ensino superior, certificação do ensino médio e a própria avaliação dessa etapa do ensino, com o Enem por escola. Não são muitas funções para um único instrumento?
Não tenho uma posição clara se isso precisa mudar. No caso da certificação, existem duas direções. A certificação pelo Encceja [do ensino fundamental] tem uma dimensão mais educacional: o aluno que está fora da faixa etária correta vai para uma escola, tem uma experiência escolar e no fim dessa experiência tem a certificação.
A certificação pelo Enem é um pouco não escolar [certificação pode ser obtida sem que o aluno tenha cursado o ensino médio].
Apenas entendo que seria melhor para o aluno passar por uma experiência escolar em vez de passar simplesmente por uma experiência de certificação isolada dessa experiência.
O MEC defende que os recursos dos royalties do petróleo para a educação sejam usados, prioritariamente, para melhorar o salário dos professores. O sr. acha que o aumento na remuneração vai implicar um melhor resultado em sala de aula?
Não é uma consequência natural, mas é fundamental [para melhorar o aprendizado]. Dinheiro é absolutamente essencial para salário, estrutura, formação dos professores. A sociedade brasileira tem que se dar conta de que escola tem que ser de tempo integral, para o professor e para o aluno. Temos que colocar isso no nosso horizonte.
Em vários lugares do mundo, as pessoas têm dificuldade de entender que uma escola [no Brasil] funciona em três turnos, que o mesmo prédio recebe um grupo de alunos de manhã, outro de tarde, outro à noite.
Para que esse processo mude, a gente precisa de mais recursos. As nossas escolas, com muita frequência, não têm espaço para o professor ficar lá, porque foram pensadas como algo acidental.
Por que ela é um lugar onde o professor passa?
Porque essa foi a nossa tradição. [O Brasil] Criou uma escola que dá uma formação superficial. Foi pensada para poucos, não como uma política de todos, como direito.